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ESTRUTURA DE COMUNIDADES: PROCESSOS LOCAIS E REGIONAIS

Compreender a diversidade, entender porque as espécies estão juntas em um determinado local, porque certos locais tem muitas espécies enquanto outros tem poucas é objeto de estudo da ecologia de comunidades. E a diversidade, riqueza e composição são todos parâmetros da estrutura de comunidade que intrigam ecólogos há décadas.

A estrutura de comunidades é objeto de estudo da ecologia desde o século XIX, tendo início com os estudos de Forbes, embora o nome comunidade da forma como é usado hoje só tenha sido cunhado em 1920 por Elton. O termo “comunidade”, muitas vezes, significa coisas diferentes para diferentes ecólogos. A maioria das definições de comunidades ecológicas inclui a ideia de uma coleção de espécies encontradas em um lugar específico. Essas definições partem da ideia de que essas espécies devem interagir de alguma maneira significativa para serem consideradas membros da comunidade.

Atualmente, a definição que vem sendo mais adotada para comunidades está presente no livro “Ecologia: de indivíduos a ecossistemas” de Michael Begon1, como um conjunto de espécies que vivem em um determinado local ao mesmo tempo. Essa definição não limita nenhuma escala espacial, taxonômica ou temporal. Assim, o tamanho da área que abriga a comunidade pode variar de centímetros a quilômetros; a escala temporal permite considerar como coexistentes espécies que ocorrem juntas tanto em um dia como em décadas e, pode-se estudar a comunidade conforme o objetivo do estudo, restringindo as espécies de estudo dentro de um nível de classificação (e.g família, classe) ou mesmo não haver coesão filogenética e fazer o recorte por grupos funcionais para a avaliação. Essa flexibilidade do conceito de comunidades é o que permite essa classificação ser aplicada a praticamente qualquer conjunto de organismos vivos, desde que a escala usada seja coerente com os processos ecológicos que serão avaliados.

Essa visão flexível de escalas e até mesmo o reconhecimento da importância da escala (espacial, temporal, filogenética…) no estudo dos processos ecológicos é relativamente recente na ecologia de comunidades. No entanto, a escala dos processos analisados na ecologia de comunidades variou muito ao longo da história dessa disciplina. Então, a falta de concordância entre os pesquisadores sobre fatores importantes na estruturação das comunidades e da diversidade, em muitos casos, se deveram a análises em escalas espaciais diferentes.

Os estudos de comunidades ecológicas podem ser rastreados até o estudo clássico de Forbes (1887)2, embora esse nome não tenha sido usado explicitamente: “The lake as a microcosm”. No seu artigo, Forbes ressalta a importância de estudar a espécie não de forma isolada, mas chama a atenção para o fato de que deve-se levar em conta as várias condições de que essa espécie depende, como ele cita: “… Estudar o sistema inteiro e as condições que afetam a prosperidade das espécies…”. Observando a fauna e as características físicas e químicas dos lagos, ele deduz diferenças entre os lagos, estabelece a relação de luta pela sobrevivência de espécies de peixe e o relacionamento entre predador e presa e vislumbra cadeias alimentares. Nesse estudo, a importância de processos locais como a competição e o filtro ambiental local na estrutura da comunidade começam a ser reconhecidos.

Depois dos estudos de Forbes, já no século XX, Charles Elton (1920)3 cunha o termo comunidade ecológica ao observar uma relação de interligação entre os organismos, formando uma entidade funcional local. Nesse momento há novamente um reforço da importância de um processo local, a interação entre as espécies influenciando a estrutura da comunidade.

Ainda na década de 1920, são propostas duas formas opostas de organização de comunidades por Clements e Gleason. Os estudos de ambos já são em uma escala espacial maior do que os estudos anteriores e ambos estudam a distribuição de espécies vegetais ao longo de gradiente ambientais para discutir a natureza das comunidades. Clements considera as comunidades como sistemas fechados, com uma composição de espécies altamente interdependentes4. Ele assume que as espécies têm uma forte influência umas sobre as outras e considera que as comunidades funcionam como um superorganismo onde uma espécie depende das outras para sua sobrevivência. Embora a análise seja em uma escala espacial maior, Clements reforça a importância dos processos locais determinando a diversidade da comunidade ao considerar as interações entre as espécies como inteiramente determinísticas.

Em resposta a Clements, o botânico Henry A. Gleason (1882-1975) defendeu que uma comunidade, muito diferente de ser uma unidade distinta como um organismo, é meramente uma associação fortuita de espécies, cujas adaptações e requisitos as capacitam a viver juntas sob as condições físicas e biológicas de um determinado lugar5. Uma associação de plantas, ele disse, é “não um organismo, raramente mesmo uma unidade vegetacional, mas meramente uma coincidência”. Analogamente, a estrutura e o funcionamento das comunidades simplesmente expressam as interações de cada espécie que constituem as associações locais, e não refletem qualquer organização, propósito ou qualquer outra coisa acima do nível das espécies. Esse raciocínio faz sentido sob a ótica da seleção natural, pois esta age sobre o ajustamento dos indivíduos, e assim cada população numa comunidade evolui para maximizar o sucesso reprodutivo de seus membros individuais, e não para beneficiar a comunidade como um todo.

Na década de 1950, Evelyn Hutchinson sugeriu que a razão para a existência de um número tão grande de espécies no mundo era resultado de um processo na escala local de comunidades. Esse estudo é considerado por muitos pesquisadores a principal evidência para importância dos processos locais e um dos que mais contribuiu para o foco na escala local. Segundo ele, haveria um limite para a similaridade das espécies que poderiam coexistir em uma comunidade, e esse limite era resultado da competição entre as espécies6. Para testar essa hipótese, ele mediu o aparelho bucal de vários animais, principalmente insetos, e percebeu que as espécies divergiam mais em simpatria do que em alopatria. Esse foi um dos primeiros estudos a evidenciar o papel da competição como um mecanismo local importante nas comunidades.

Na década de 1960, outros estudos começaram a indicar a importância da predação sobre a estrutura das comunidades em escala local, por meio do controle Top-down. Nesse período, Robert Paine evidenciou a ação conjunta da predação e da competição determinando a diversidade de espécies que existe em uma comunidade local por meio de um processo denominado cascata trófica7. Nesse processo, o predador de topo age controlando as populações das espécies mais abundantes e impede que essas excluam competitivamente as espécies menos abundantes. Nesse caso, o predador é considerado uma espécie-chave pois ela tem um efeito desproporcional em relação as outras sobre a comunidade e sua remoção pode diminuir muito a riqueza de espécies ou até levar o sistema ao colapso. O estudo de Paine foi experimental, no qual ele removia o predador de topo, uma estrela do mar denominada Pisaster e, ele observou que após um ano, a riqueza nos locais onde a estrela-do-mar foi removida a riqueza de espécies diminuiu de 15 para oito espécies.

Nesse período, alguns estudiosos, como MacArthur, afirmavam que processos que ocorrem em escala local, principalmente relacionados a interação entre as espécies (e.g. predação e a competição), entravam em equilíbrio tão rapidamente que o papel de processos em escalas maiores, tanto temporais (história) quanto espaciais (dispersão), se tornavam secundários8. Além disso, a ecologia estava assumindo uma vertente cada vez mais experimental, o que tornava necessária a inclusão de várias réplicas nos estudos. Então, se tornava difícil avaliar processos ou detectar a importância de processos que ocorrem em escalas espaciais muito grandes, o que contribuiu para o foco no estudo de processos locais nas comunidades.

Já na década de 1980, estudiosos começam a apontar as dificuldades de se prever a estrutura de comunidades com base apenas nos processos locais. Ricklefs faz uma revisão do assunto e aponta então a importância de se considerar os processos em escala regional sobre a estrutura das comunidades9. Ele inicia o estudo apontando as incongruências das premissas que se deve assumir ao considerar apenas os mecanismos em escala local. A primeira premissa é de que a variação na diversidade deve refletir a maneira pela qual as condições físicas influenciam a coexistência de espécies, assim, a riqueza de espécies deveria variar em relação direta com o ambiente, especialmente o clima. Ele então aponta alguns exemplos contrários a esse pressuposto. Um exemplo interessante é da vegetação de mangue: através dos trópicos, o limite que separa os ambientes marinho e terrestre suporta a vegetação do tipo mangue (mangrove), que consiste de espécies de árvores unicamente (e convergentemente) adaptadas para a imersão de suas raízes em águas salgadas. Na região tropical do Novo Mundo e oeste da África, comunidades de mangue consistem de cerca de 3 ou 4 espécies em toda a região, cada uma formando uma zona distinta com respeito ao nível da maré. Em contraste, no hemisfério oriental, na região da Malásia, a vegetação de mangue em condições muito similares é formada por 17 espécies principais e 23 subsidiárias fracamente organizadas em cinco zonas. Estudos atuais usando fósseis e avaliando o relacionamento filogenético entre as espécies mostram que um grupo único que se desenvolveu no terciário ocupava tanto as vegetações do oriente quanto do ocidente. Quando se compara, a geografia das regiões é bastante distinta. Na região oriental, a geografia é mais complexa, com várias ilhas de idades diferentes, enquanto no ocidente, a costa é relativamente contínua e simples. Essa geografia complexa da região oriental tornou as populações costeiras mais isoladas e provavelmente permitiu uma diversificação maior. Estes resultados indicam a importância de fatores históricos e regionais (configuração geográfica da área) sobre a diversidade, o isolamento geográfico foi mais importante do que os fatores ambientais locais pra determinar a diversidade.

A segunda previsão importante apontada por Ricklefs é que a riqueza de espécies local (alfa) deve ser independente da riqueza regional (gama) de espécies. As discrepâncias entre as duas seria explicada pelas diferenças nas características dos habitats.

A literatura recente em ecologia abordou essas predições em detalhes, produzindo duas conclusões gerais. Em primeiro lugar, a riqueza de espécies geralmente está relacionada às condições físicas do ambiente – temperatura e disponibilidade de água, por exemplo – embora a diversidade em ambas as escalas, regional e local, possa ser diferente entre regiões com ambientes semelhantes. A estreita relação entre os dois também é prevista por hipóteses baseadas na diversificação evolutiva de zonas ecológicas de origem. Em segundo lugar, onde os testes são viáveis, geralmente em comparações intercontinentais, a riqueza local de espécies está diretamente relacionada à riqueza de espécies regional. Isto sugere que os processos de grande escala (produção de espécies e extinção regional) influenciam a diversidade regional e local ou, alternativamente, que as condições ambientais igualmente influenciam os processos em ambas as escalas regional e local. As diferenças na diversidade em ambientes similares em diferentes regiões – chamadas anomalias diversidade – indicam que os fatores regionais e históricos em grande escala podem influenciar a riqueza de espécies local mais do que o ambiente local.

Os processos que podem atuar sobre as comunidades em escala regional estão relacionados ao pool regional de espécies e são principalmente a dispersão, extinção e especiação. A dispersão pode atuar sobre as comunidades locais de diversas formas, tanto por permitir a entrada de uma nova espécie no conjunto local, quanto ao permitir a manutenção de populações em ambientes sub-ótimos em um dinâmica de fonte-sumidouro, quando a espécie consegue manter uma alta taxa de dispersão. A taxa de extinção local das espécies vai variar em função da dispersão que permite a recolonização local. Além disso, a dispersão pode permitir a entrada de novas espécies no sistema, vindas de outras regiões. Uma segunda forma de entrada de espécies no sistema é pela especiação. Por fim, os fatores históricos também podem ter uma importância sobre a diversidade e a estrutura das comunidades. Um exemplo é o padrão de substituição de espécies gerado por processos geológicos, tais como eventos de orogênese ou epirogênese, que podem isolar populações e, assim, os processos locais de interações com outras espécies e com o habitat que sofreu modificações, podem levar a especiação por vicariância. A vicariância aumenta a diversidade regional pelo aumento da substituição de espécies entre comunidades, sem que a diversidade local tenha sofrido alterações.

É interessante que MacArthur seja um dos pesquisadores que sugeriu que os processos locais tivessem um papel preponderante na montagem de comunidades, porque ele foi um dos primeiros autores a evidenciar a importância dos fatores históricos e da dispersão sobre a diversidade e composição das comunidades. Ele propôs a teoria de biogeografia de ilhas, que demonstra que ilhas maiores e mais próximas do continente tenderão a apresentar maior riqueza de espécies10. Esse padrão se deveria ao fato de que espécies conseguem chegar nas ilhas mais facilmente (por dispersão a partir do continente) quanto mais perto elas estiverem do continente e que ilhas maiores comportariam um maior número de espécies. Essa teoria não inclui nada sobre a habilidade competitiva das espécies, sobre a predação ou qualquer tipo de interação, que são os mecanismos considerados predominantes na determinação da riqueza e da composição de espécies das comunidades.

Como podemos conciliar as relações diversidade-ambiente, a relação entre diversidade local e regional, e os efeitos regionais (anomalias de diversidade)? Essa é a proposta da abordagem de metacomunidades, que particiona o espaço hierarquicamente em metacomunidades (pool regional) e comunidades locais, subconjuntos da metacomunidade que estão conectados pela dispersão de múltiplas espécies. O particionamento da metacomunidade pode incluir vários níveis hierárquicos, sendo a única restrição de que haja pelo menos dois níveis (local e regional). Ao substituir fronteiras artificiais de comunidades locais por um contínuo tempo-espaço de processos e padrões da ecologia de populações e comunidades, podemos imaginar processos de grande e pequena escala tendendo para o equilíbrio ao longo de um continuum de escalas11.

Na teoria de metacomunidades, já foram propostos vários modelos que variam a importância dos fatores locais e regionais na determinação da diversidade de espécies. Entre os modelos mais controversos e mais conhecidos está a teoria neutra de Hubbel12, também conhecida como deriva ecológica, que foi inspirada nas teorias de biogeografia de ilhas e da deriva genética. Essa teoria procura explicar a diversidade de espécies em uma região sob a ótica de metacomunidades. Ele propõe que o equilíbrio no número de espécies dentro de uma metacomunidade é uma função da taxa de especiação e do número total de indivíduos, que geralmente varia de acordo com o tamanho da região. Se a taxa de especiação for influenciada pelas condições ambientais, esta teoria também produziria relações diversidade-ambiente, assim como uma correlação entre a área e a diversidade da teoria de biogeografia de ilhas.

O modelo de Hubbell também prevê uma relação direta entre o número de espécies em uma comunidade local e a diversidade regional. Esta relação é determinada pelo equilíbrio entre a produção de espécies e a dispersão. A teoria neutra ainda sofre resistência entre os ecólogos porque ignora fatores ecológicos tradicionalmente considerados importantes – particularmente a variação ambiental e a especialização no uso do habitat e enfatiza a conexão da diversidade local com os processos de grande escala. No entanto, é importante chamar a atenção de que a teoria neutra tem limitações. A primeira limitação é que a teoria pode ser aplicada apenas a um nível da teia trófica – pode explicar a diversidade de árvores, por exemplo, ou a diversidade de insetos herbívoros, mas não explicaria como o número de espécies arbóreas poderia afetar o número de espécies de insetos herbívoros. A segunda limitação é que ela deve ser mais eficiente para explicar a diversidade de plantas ou microrganismos do que de animais, porque é mais comum que diferentes espécies de plantas ou de microrganismos se sobreponham na forma de explorar os recursos. Além disso, o modelo não funciona para grandes escalas espaciais. Por exemplo, as plantas alpinas são claramente adaptadas a condições diferentes daquelas em que lianas e árvores de mogno prosperam, por isso teriam dificuldade para sobreviver na floresta tropical. Então, nessa escala, apenas a teoria de nicho pode explicar a distribuição das espécies.

O avanço nos estudos de metacomunidades parece ser o caminho para resolver o problema das respostas diferentes das comunidades a um mesmo processo, por permitir avaliar os papéis dos processos em diferentes escalas espaciais e temporais.

Ao longo dos próximos textos divulgados aqui no blog e discutidos na disciplina Ecologia de Comunidades e Ecossistemas, ministrada nos cursos de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Conservação da UFRJ e Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da UENF, vamos explorar em mais formas de investigar a variação na diversidade das comunidades no espaço e no tempo e as implicações dessas variações para os ecossistemas.

Referências

1. Begon, M., Townsend, C. R. & Harper, J. L. Ecologia: de indivíduos a ecossistemas. (Artmed Editora, 2009).

2. Forbes, S. A. The lake as a microcosm. (1887).

3. Elton, C. S. The Pattern of Animal Communities. (Methuen and Co. Ltd, 1966).

4. Clements, F. E. Plant succession: An analysis of the development of vegetation. (Carnegie Institution of Washington, 1916).

5. Gleason, H. A. The individualistic concept of the plant association. Bull. Torrey Bot. Club 53, 7–26 (1926).

6. Hutchinson, G. E. Homage to Santa Rosalia or why are there so many kinds of animals? Am. Nat. 93, 145–159 (1959).

7. Paine, R. T. Food webs: linkage, interaction strength and community infrastructure. J. Anim. Ecol. 49, 667–685 (1980).

8. MacArthur, R. H. Population ecology of some warblers of northeastern coniferous forests. Ecology 39, 599–619 (1958).

9. Ricklefs, R. E. Community diversity: relative roles of local and regional processes. Science (80-. ). 235, 167–171 (1987).

10. MacArthur, R. H. & Wilson, E. O. The theory of Island biogeography. Princeton. (1967).

11. Braga, C., Oliveira, J. A. de & Cerqueira, R. Metacomunidades: uma introdução aos termos e conceitos. Oecologia Aust. 21, 108–118 (2017).

12. Hubbell, S. P. The unified neutral theory of biodiversity and biogeography. (Princeton University Press, 2001).

Foto de capa de Fábio Khaled

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